Jornal “Diário do Minho” de 14 de Outubro, pág. 21
UM REGIME FALHADO
Quando
acabam de se completar 101 anos sobre a instauração da república em
Portugal, parece-me salutar convidar os meus prezados leitores a
acompanharem-me num exercício reflexivo de extrema simplicidade: avaliar
se a forma institucional e simbólica de governo revolucionariamente
implantada em 1910 se pode considerar hoje realizada e em que medida,
face às leis, à ética e aos princípios que, segundo a doutrina
republicana, devem reger o funcionamento de um Estado de direito
democrático.
Ora,
com o respeito que a todos é devido, inclusive àqueles que,
diferentemente de mim, preferem a república à monarquia constitucional,
não tenho dúvidas em afirmar que estamos ainda muitíssimo longe de
cumprir os requisitos que a Constituição da República impõe aos
governantes e aos titulares de cargos públicos no exercício do poder.
Aliás,
ponderando as mais importantes consequências do 5 de Outubro, vou mais
longe na minha opinião: a Nação não lucrou nada com a alteração do
regime. Antes pelo contrário, viu agravarem-se consideravelmente as
condições de vida dos seus cidadãos, a desordem nas ruas, o défice, a
dívida pública, a situação económica, as discriminações de pessoas no
acesso e provimento de cargos públicos e a intolerância religiosa. Os
processos eleitorais tornaram-se menos democráticos e livres, pela
diminuição do corpo eleitoral (do qual foram excluídas as mulheres e os
indigentes) e pela violência de grupos revolucionários armados que,
impunemente, intimidavam os eleitores.
Em
suma, face ao anterior regime monárquico, os cidadãos perderam
direitos, liberdades e garantias que constitucionalmente lhes eram
assegurados e de que, na prática, pelo menos em boa parte, vinham
gozando.
Foi
justamente esse estado caótico e frágil do país subsequente ao 5 de
Outubro que conduziu ao golpe revolucionário de 28 de Maio de 1926,
movimento este que, depois, haveria de conduzir ao regime ditatorial do
Estado Novo, sob o qual vivemos durante cerca de quarenta anos.
Entretanto,
a revolução de Abril abriu, de novo, a esperança da lusa gente numa
democracia séria, com mais liberdades, mais desenvolvimento, mais
riqueza, mais justiça e menores desigualdades sociais, menor corrupção e
uma rés publica com
instituições fortes, independentes e credíveis. Mas tais esperanças não
passaram de sonhos que bem depressa se desvaneceram!
Passado
o período revolucionário inicial (vulgo PREC) e decorridos que vão mais
de trinta e seis anos sobre o novo regime, é tempo de extrair
conclusões do que tem sido a nossa vida política.
E
a primeira delas é a de que o Senhor Presidente da República (PR) não
passa de uma figura decorativa, sem poder político efectivo, sem
independência, sem autoridade, sem o prestígio e sem a
representatividade que devem ser apanágio de um verdadeiro Chefe de
Estado, que ao invés de ser factor permanente de união, tem sido, as
mais das vezes, motivo de divisão e de preocupação dos portugueses!
Com
excepção do poder de dissolver a Assembleia da República, as suas
restantes competências e meios de intervenção política têm-se revelado
perfeitamente inócuos. E, a partir da última revisão constitucional, com
a conivência dos maiores partidos políticos nacionais, viu-se até
privado do poder de dissolver os órgãos de governo regional e suspender
temporariamente a autonomia regional!
Para
se aquilatar da gravidade desta alteração da Constituição, basta tomar o
exemplo da Madeira: quebrando sistematicamente as mais elementares
regras de disciplina orçamental, desrespeitando continuadamente as
decisões e reparos do Tribunal de Contas, omitindo, consciente e
dolosamente, o montante da dívida pública, injuriando, difamando e
desrespeitando, vezes sem conta, os titulares dos órgãos de soberania
nacional, ameaçando constantemente a autoridade do Estado, o Presidente
do Governo Regional, no poder há 33 anos…, permite-se fazer todos esses e
outros desmandos contra a república, sem que o PR e o Governo nada
façam! E isso mesmo antes da aludida mudança constitucional!...
Ora,
quem deixa que tudo isso aconteça impunemente não pode merecer a
confiança dos cidadãos nem tem autoridade para negociar com o Governo
regional o pagamento da dívida e pôr em ordem as finanças da região.
E,
quanto ao Governo da nação, o panorama não é melhor. Com um
primeiro-ministro actuando como um verdadeiro chanceler da república e
com uma produção legislativa superior à da AR, onde, com base geralmente
maioritária, vem abafando a oposição, os resultados têm sido
catastróficos: constante aumento da dívida pública que se situa hoje a
um nível que só tem paralelo no de há mais de oito décadas; derrapagem
do défice orçamental para mais do dobro ou do triplo dos valores
percentuais permitidos pelas normas comunitárias; aumento das
assimetrias regionais e sociais; disparo do desemprego para números
nunca antes vistos; aumento da corrupção a todos os níveis do Estado e
da Administração Pública; agricultura e pescas arruinadas e reduzidas a
produções ridículas e cada vez mais longe do objectivo estratégico de
satisfazer as necessidades do país; florestas mal geridas e à mercê de
fogos criminosos; insuficiente industrialização; turismo deficientemente
explorado; educação pouco exigente, mal organizada, mal planeada,
indisciplinada e falhada, etc, etc, etc…
E
a somar a todo este rosário de malfeitorias, um poder judicial e uma
justiça absolutamente desacreditados por prescrições de crimes, por
deficientes investigações, pela excessiva morosidade de tantos e tantos
processos, por promíscuos provimentos de magistrados em lugares
políticos ou de confiança política e por estranhas e incompreensíveis
situações que fazem pensar que a justiça não é igual para todos, que há
uma para os ricos e outra para os pobres!
Dado
que não me quero alargar em mais considerações, penso que o cotejo da
actual situação com a que precedeu o 5 de Outubro, guardadas as devidas
distâncias e circunstâncias temporais, permite concluir, tal como acima
referi, que Portugal nada ganhou com a troca da monarquia constitucional
pelo regime republicano.
Cuidando que, ao retirar a instituição real da chefia da república (no sentido de rés publica)
resolveriam os problemas que então afligiam a nação – e também eram
muitos e graves –, o que os revolucionários conseguiram foi exactamente o
oposto do que defendiam: menos democracia, menos liberdades públicas,
menor representação eleitoral, menor segurança pública, desprestígio
internacional, governos fracos e alguns deles em ditadura!
Seja
qual for o pensamento dos meus estimados leitores quanto à melhor opção
a tomar quanto à forma ou tipo de chefia de Estado, uma coisa é certa: é
preciso alterar urgentemente o regime de governação da coisa pública. O
vigente falhou. E falhou redondamente.
Precisamos
de uma república virtuosa, governada por homens de bem, dispostos a
servir a Nação – e não a servirem-se dela –, que saibam dar o exemplo de
sacrifício e de solidariedade nestes momentos difíceis que
atravessamos. Com igualdade de tratamento perante a lei e com respeito
pela dignidade humana e pela vida.
Em
suma, uma república ao serviço de Portugal e dos portugueses, que
represente a vontade geral da Nação, no respeito das minorias e dos
direitos e garantias de todos os cidadãos. Chefiada por um Rei ou por um
Presidente, a opção só ao povo compete. Mas uma república, não um seu
simulacro. Para esse efeito, devolva-se-lhe a palavra. Depois de 101
anos sem lhe dar essa oportunidade, está na hora de o ouvir. Antes que
seja tarde.
António Brochado Pedras
Provedor da Santa Casa de Misericórdia de Barcelos
Presidente do Secretariado Regional de Braga da União das Misericórdias Portuguesas
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